Lilith — A metade de uma realidade

A primeira questão que precisa ser esclarecida é o que é um mito. Mito é um discurso intrigante, uma mensagem de origem desconhecida, um relato não esclarecido. É um conjunto de conhecimento oral sobre um domínio. Vem da palavra “mýein” (μῦθος) que significa, entre outras coisas, “iniciado nos mistérios ou enigmas” ou “narração”.

Por ser uma narração, o mito é um conto pormenorizado que traça um esboço ou uma representação entrecruzada de um tempo histórico ou de um personagem de caráter divino ou universal da condição humana. O ser envolto em mito é rodeado de extraordinária admiração e estima. Por isso, são atribuídos qualidades ou excelências.

Desde a Antiguidade há mitos. (Afinal, não havia a escrita).

Se você entendeu esta explicação, pode agora saber que o mito de Lilith é descrito na Bíblia apenas no Livro do profeta Isaías, capítulo 34, versículo 14. (Infelizmente são as raras as Bíblias que não traduziram o termo para “Sátiro” ou animal noturno.

O mito escatológico sumeriano de Lilith surge antes da escrita do Livro de Gênesis. Lilith é visto como uma criação de Deus depois que Ele, o Senhor, põe ordem no caos dos cosmos. Nesta hipótese, Lilith surge em GN. 1,24-25. Ela é parte da natureza, mas tem semelhança humana. Alguns dirão que ela é um demônio.

Calma, quando a palavra demônio (δαιμόν) surge da língua grega (no grego bizantino, δαιμόνιον) e passa para o latim tardio “daemonĭum” – a língua que dá origem a língua portuguesa – tem o sentido de “caráter”, “presença sobrenatural” ou a “força de um herói”. Todos, desta maneira, poderíamos ter um demônio segundo o pensamento grego antigo. No pensamento de Hesíodo, um autor grego, demônios eram os guardiães dos mortais. Nesta ótica, da palavra demônio surge o substantivo feminino “eudaimonia” (a felicidade, boa fortuna ou possessão de um espírito de contentamento ou prosperidade).

Lilith era assim, um ser feliz. Da ideia de felicidade surge a sexualidade. Sexualidade é um tema recorrente na literatura apocalíptica. Em sua sexualidade Lilith (ou Lilitu, em sumério) tem ânsia pela liberdade, e recusa os cerceamentos da dominação masculina. Ela nega ser um objeto, não quer ser sujeito na história. Ela rejeita Adão e a ideia de “encher a terra”.

Em vez de ser um elemento construtivo da humanidade, prefere ser um elemento desconstrutivo. Em filosofia, é um “diálogo intersemiótico de compreensão dos elementos (construtivos, desconstrutivos e reconstrutivos) do universo religioso, literário e mitológico. Ou seja, é a investigação ou exame dos significados e sentidos da linguagem.

Nesta ótica, na mitologia da Babilônia, Lilith era um demônio com corpo de mulher que vivia no inferno. Na mitologia judaica (Midrash e Talmud) Lilith utiliza a água como portal e tem em suas mãos o “cordel da destruição e o prumo da ruína” (IS. 34.11). Também na Cabala, é a primeira mulher de Adão, que depois assume a forma de serpente para influenciar Eva na escolha do fruto proibido. Entre os sumérios, em meados de 3000 a. C., Lilith era o demônio que regia às tormentas e ventos. Daí a ideia de ser um espírito ruim simbolizado pela lua ou noite. Na mitologia mesopotâmica, Lilith era uma mulher sombria e mágica que trazia pestes, mal-estar e à morte através da água (o símbolo da mudança, tumulto e agitação violenta). E atualmente, entre os românticos, desde o desenvolvimento da Europa, é um símbolo de sensualidade e sedução que faz os homens doentes. (Veja o quadro de John Collier, de 1889, aqui neste texto).

Enfim, na literatura, na Teoria do Mito, nas Teorias do Imaginário, nos desenvolvimentos filosóficos, Lilith é um mito, um segredo. Apenas a metade de uma realidade.

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Distanciamento inter-humano e isolamento social — a perspectiva das relações após a pandemia

As restrições sociais impostas por um vírus é capaz de alterar os destaques da valia social (intrínseca e estimativa)? É capaz de mudar os apreços inculcados ao longo de gerações, a significação exata dos limites, dos espaços, dos períodos, das balizas do envolvimento e dos conteúdos constituintes das mais diversas relações humanas? Um microrganismo acelular que nos força o distanciamento, modificará a humanidade? O préstimo social da pandemia oportunizará um aumento de sensibilidades, de percepções e dos bons sensos? O contato humano será cerceado? A humanidade impossibilitará a expressão das múltiplas experiências interiorizadas, das variadas personalidades, das diferentes realidades antropológicas?

A psicologia, que nunca fora onisciente, não tem a resposta. A psiquiatria, e sua dimensão física da intelectualidade e emocionalidade, não sabe a possibilidade dos efeitos das insanidades causadas pelo distanciamento e isolamento. A teologia não encontra o rumo holístico do mistério humano. São três mediadores de ajuda presos no dilema da clausura.

Por isso, no encarceramento da sociedade, os relacionamentos entram em crise. Não conseguem derrotar “a crítica, o desprezo, a defensiva e os embaraços” (GOTTMAN, 1995) causados pelo distanciamento e isolamento. E por esta causa a humanidade entra num ciclo de competição psicossomática – às vezes disfarçada em atividades de intercâmbio, outras em teatros sociais (DERRIDA, 2009). Criamos algozes e vítimas sem respostas porque enfraquecemos a pessoa nos emaranhados das dificuldades psicossociais e econômicas.

Assim, os relacionamentos em crise não podem admitir uma análise deficiente do complexo humano, não podem consentir com os fenômenos grosseiramente repetidos por causa da interdependência, “da dialética do processo social” (BOURDIEU, 2014). Afinal, o exame insignificante cria ou reforça os conflitos estéticos da realidade política. Deste modo, fixamos os problemas sociais: as opiniões, nunca aclaradas, que geram pressentimentos, heresias e mortes; o embrutecimento das comunicações; e a akedia.

Opiniões são conhecimentos superficiais, em grande parte ilusórios, apegados aos sentidos. São conhecimentos imediatistas, algo incapaz de atingir a essência dos problemas. Opinião, na língua grega λόγος, tem origem em λέγω (légō), literalmente “Eu digo”. Por isso, em tempos discordantes, os dominantes sem risco algum determinam as falas, as marcas, as manias de todas as representações sociais. Os dominados estabelecem “juízos firmes carregados de emoções” (JASPERS, 2018). As opiniões se concentram na preguiça do pensamento, na falta de questionamento, nos descompromissos e esquivas da responsabilidade. “O conluio objetivo dos interesses” (BOURDIEU, 2014) apropria-se simbolicamente dos opositores ou concorrentes e orientam os pressupostos e postulados dos conflitos. Praticamente tudo é bargaining power – uma violência branda para os que flexibilizam a “autoridade protetora” (BOURDIEU, 2014).

A comunicação, segundo Nobert Wiener, é a sintetização da retroalimentação do ser humano, […] uma interpretação do conhecimento que o homem tem do universo e da sociedade. É a ação de participar da troca de informações através de símbolos. Por ser um conceito polissêmico, um conjunto de canais e meios, um processo social complexo e diversificado, a comunicação é o ponto da origem e do destino da mensagem selecionada (Claude Shannon). Vale dizer por fim que comunicação não é informação. Informação é um ritual de purificação, um sistema de transmissão de inteligência. Próxima do pensamento aristotélico, a informação é a soma do movimento flexível e abrangente, enérgica, que soluciona a incerteza, minimiza o caos e extingue a desordem da entropia. Informar não é oferecer significado nem ratificar uma palavra. Antes é uma dificuldade, pois subliminarmente, as informações estabelecem interpretações automáticas, não conscientes. A mente humana inconsciente transforma diferenças difusas e nuances sutis em distinções nítidas, o que nos conduz a apagar frequentemente os detalhes ou torná-los irrelevantes (MLODINOW, 2013).

A akedia, a paralisia da esperança, é a impressão de esvaziamento, insipidez ou aridez por falta de atenção ou motivação. É a perspectiva de não ter mais sentido nem gosto; tudo passa a ser mecânico. É um risco para o tempo presente dos relacionamentos. Pois é no tempo presente que a esperança se une ao intelecto para manter-se compromissada e perseverante, e para guardar a disposição da realização do espírito em nosso íntimo (HEGEL). Ou seja, a esperança transforma as condições objetivas da sociedade pela plenitude da vida individual. E é por esta causa que a abertura para esperança precisa ocupar a totalidade dos espaços humanos. Como disse Karl Popper,

É preciso que nós, homens, tenhamos coragem, quando pomos a refletir sem vendas nos olhos. Devemos avançar no escuro, de olhos abertos, proibindo-nos de renunciar ao pensamento. A coragem engendra a esperança. Sem esperança, não há vida. Enquanto há vida, há sempre um mínimo de esperança, que brota da coragem. A esperança se mostra ilusória quando o existente naufraga. Só amparado na coragem pode o homem caminhar de fronte erguida para o seu fim […] (POPPER, 1965, 2013).

Enfim, a esperança combate o medo, a dor, a incerteza, a tristeza e a intimidação dos perigos com a firmeza reagente dos resultados que nos são impostos.

Para concluir, o distanciamento inter-humano e o isolamento social precisa ser norteado pela educação, pela ética e pelo pensamento crítico se, de fato, quiser encerrar com os preconceitos, extinguir as crises relacionais e combater os infortúnios, os abandonos, as pobrezas (expressos nos conceitos de Gabinete do ódio, Bancada da bala, cegueira moral do Judiciário, 35 Partidos políticos, ideologias discrepantes do Ministério Público, povo inculto, com pouca prática da ciência e larga impolidez, rústico em escolaridade, sem os cuidados especiais das ciências do conhecimento).

Em outras palavras, precisamos internalizar os significados e as extensões expressas na frase: “o que é uma distância segura para alguém, para outra pessoa é um abismo” (Haruki Murakami) para não sermos aprisionados pela banalidade do mal nem pelos erros e equívocos estabelecidos pelas opiniões, pelas falhas de informação e comunicação e pela perda da esperança. Carecemos cultivar a convicção – a palavra, manifestação ou mensagem – “que permite pôr, com a consciência tranquila, o tom da força ao serviço da incerteza” (Paul Valéry) que muda nosso futuro.

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Angústia kierkegaardina

Algumas vezes atos imediatos transformam o significado que você pretendeu dar a sua história. É o momento no qual a angústia – “a determinação do espírito sonhador”, segundo Søren Kierkegaard – entra em nós.

Todo indivíduo possui uma história. São todas histórias perfeitas, vividas na maioria sem ilusão, ainda que algumas sejam tristes. Todas as histórias pessoais, particulares e íntimas são a declaração de quem você é.

A angústia, a melancolia aprofundada na alma, a vegetação do espírito, só é vencida quando o supérfluo do desejo, a concupiscência do íntimo, o pecado, o frêmito da irrazoabilidade é derrotada pela reflexão dos contrastes externos e pela iluminação das virtudes da lucidez.

É neste átimo que a meditaçãoa deferência do apreço e a atenção minuciosa do temorvence à vertigem da angústia, o pressentimento do nada, a exclusão da beleza, o isolamento silencioso, a doença humana: o egoísmo intransigente, o pudor, a inutilidade dos maus desejos, a negação das empatias, o instante da imperfeição, a aespiritualidade, o esmorecimento da genialidade, a tragédia da imbecilidade, a precipitação no desespero, o erro, os opostos da piedade, a ambiguidade das liberdades assistidas, as contradições extremas, a animalidade articulada, o demoníaco, a proibição da ética, o violento abstrato, os aborrecimentos, os pensamentos exteriores, as imprecisões da certeza não provada, o elencar das incredulidades, a superstição da subjetividade, a concreção da hipocrisia, a efetivação da covardia, a metafísica do esquecimento, o subterfúgio dos constrangimentos, a opacidade do bem, a repetição da condenação, a finitude das ilusões, o hermetismo da morte social, o suicídio religioso.

Não seja arruinado pela angústia que demole seus relacionamentos.

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O ser humano em situação de cárcere – Possibilidades da Capelania Prisional

Vista por alguns como a face macilenta da inquietação e por outros como o dissimulado cheiro do silêncio, o lugar da perdição, o sistema prisional impressiona, entre outras coisas, pelas medidas que são imputadas ao homem.

O ser humano, em situação de cárcere, vivendo nas regiões subterrâneas onde as almas se afundam nas dores, nos sofrimentos, nas angústias, no contágio dos rancores, tendem a enraizar nas mentes e corações uma contínua evocação do mal. As afecções da alma enrijecem as más impressões, as sensações das dores, as rememorações do crime, do erro e do pecado. Por isso, cria-se fantasias ou sensações de influência causadas por um abalo sentimental ou uma comoção do oculto.

Assim, os encarcerados mutilam as famílias, ainda que parcialmente. Endurecem os conteúdos que a convivência social pode ter-lhes imposto, e censuram, ao menos no início, a fé. São, portanto, realizadas associações superficiais, assonâncias, duplos sentidos da própria vida. Há muito apego as questões abstratas, aos delírios, pesadelos e esconderijos das sensações desequilibradas. São possivelmente parcelas dos “vestígios mnêmicos” da psicanálise freudiana.

Por isto, é preciso verificar as cruéis rotulagens que cerceiam e envenenam as restrições, os rótulos, os segredos e indiscrições, as abstinências e saciedades, a vida e morte dos encarcerados. Tendo em vista que na cadeia, a abertura aos caminhos da fé e a conversão dos encarcerados é algo possível porque a religião não se liquida por inexistir um lugar sagrado.

Neste sentido, necessitamos entender as teorias para explicar a violência. Pois, como argumenta Bauman (2011) as violências não são homogêneas e não podem ser consideradas de forma isolada. Uma vez que violência é uma expressão essencialmente humana, com caráter histórico, universal e específico. Logo, é um processo social e dialético advindo do imaginário, do narcisismo e do individualismo, da recusa ao que é estável, íntimo e particular na convivência com os outros. Sendo que isto estabelece a humilhação e o jugo desigual, o abuso e a incúria social. Fato que a igreja não encerra em suas disciplinas.

Possivelmente porque a atitude de Adão e Eva, no desejo de concupiscência, continua a fazer com que o mal se enraíze em todos. Fato que peçonha a todos com a cegueira do pecado. Logo, homens e mulheres, velhos e jovens afastam-se da presença de Deus; quebra-se o sentimento de dependência e somos tomados pelas tentações, imprudências, irreflexões, imaturidades, irresponsabilidades e omissões. O que incita as múltiplas formas de castigo que dominam sem corrigir o ser humano: provas de verificação, exclusões, multas, castigos físicos, penas de morte e prisão. Além de afastar o direito, mesmo que temporária e particularmente. O encarcerado é visto como alguém que merece o castigo, um ser não-humano, um ninguém que não pode andar livremente, um qualquer que deve perder a liberdade, uma pessoa sem nome, um falso que deve sofrer a recusa da justiça, o sofredor do castigo imposto pela lei dos homens porque desobedeceu uma ordem, desrespeitou a hierarquia da responsabilidade subjetiva, menosprezou a prática da ética nas relações objetivas. Numa frase, o perpétuo indigno.

A dignidade na perspectiva bíblica expressa que o homem não pode ser explicado como totalmente determinado e condicionado (SCHAEFFER, 2001). Antes deve manter-se na autonomia de sua constituição e combater as falsificações psicológicas, morais e teológicas.

Assim, chegamos as primeiras oportunidades da capelania prisional no império romano, no quarto século, passando depois pela história do Brasil, com a fé de Duque de Caxias, até os dias atuais com os poucos capelães prisionais. No desenvolvimento da Capelania Prisional descobrimos que o cristianismo não é uma série vaga de experiências incomunicáveis, um salto no escuro, algo inverificável. Antes é um esforço contra a experiência da passividade. Um esforço que nos faz aproximar de Deus através do ponto de referência, que é a Bíblia.

O que faz com que a capelania estruture suas competências e orientações junto ao próprio encarcerado, a sua família, ao seu envolvimento com a sociedade e na progressão da fé. Na vida familiar, social e religiosa, a capelania deve levar o evangelho com palavras, ações, mensagens e prova como um conjunto. Para que haja uma implicação social: viver uma nova vida de justiça e paz sem negligências.

Muito disto pode ser alcançado com o esforço do testemunho cristão. Porquanto testemunhar enfatiza o trabalho duro diante dos desafios que os males projetam, sobretudo ante as desordens que a riqueza material insinua. Assim, a família do encarcerado deve haver clareza nas decisões para exercer responsabilidades, ainda que não seja possível ser responsável por toda e qualquer coisa externa.

Da mesma forma, a capelania deve combater os preconceitos originados pela incompreensão, rivalidade, inimizade, desprezo ou escárnio do encarcerado. Deve ainda finalizar com as manias da mentira e semear o conceito de tolerância. Para que surjam oportunidades para a progressão da fé. Ou seja, sob o encerramento das sugestões sociais – o silêncio reprovador pelo particular passado, o olhar do desprezo ou a zombaria pela conversão quanto pela vida pregressa –, das censuras psíquicas e das curas funcionais, é possível, pela ação da capelania, mudar futuros.

Enfim, a capelania tem todas as possibilidades para desenvolver o amor e a vivência da fé em todos os envolvidos em seu serviço, a fim de que o ressentimento – o escravagista das reações, o censor de novas oportunidades, o tirano dos ressentimentos, o carrasco dos pesadelos do passado – deixe de penetrar nas consciências e os potencialize a alcançar o patamar de um cristianismo verdadeiro. Mesmo que entre as grades da prisão.

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A morte e sua residência

Há várias explicações para a morte.

Para muitos é a separação do corpo e da alma. Para alguns, e sobretudo para o israelita, a morte, no sentido estrito, é a forma mais fraca de vida, é toda fraqueza da condição humana, a experiência do poder desintegrador. Para outros, a morte é o desdenho e a ruptura da comunhão, no qual todo destino se torna penoso. Assim, a morte é um assalto, um submergir nos abismos da terra e nas águas caóticas que devoram, uma descida mitológica ao Sheol1. É estar fora da ação histórica de YHWV (SL. 88.10-12); por isso é uma amargura. Por último, a morte é a recusa do amor.

De qualquer forma, a morte é uma divisão (EC. 12,7; em comparação com GN. 2,7). É a lei da matéria organizada – a dissolução e a decadência do que é considerado vivo. É a cessação da existência, a disjunção das relações naturais da vida.

Com o passar dos tempos, com a compreensão do pensamento humano, sobretudo religioso, a morte se afasta da física e se atrela a vontade divina de inúmeras religiões. No cristianismo, parece que tudo começa com a ideia de que a morte não cessa a presença de Deus. Deus usa a morte como elemento penal, o poder condenatório (SL. 90,9,11-12), mas também como o progresso espiritual para o interesse do Reino (JO. 11,11; AT. 7,55-56,60).

Nos livros iniciais da Sagrada Escritura, a morte é determinação do Senhor. Mas na literatura apocalíptica, a morte se torna “autônoma, como uma realidade inimiga de YHWV e de sua obra da salvação e, por conseguinte, como realidade que Ele terá que destruir (IS. 27.7; Testamento de Levi 18; 4ED. 8.53)”.

Entendido a primícia da morte, é preciso argumentar sobre a imortalidade da alma. Em 1TM. 6,15-16, diz-se que só Deus possui imortalidade – a existência sem fim. Assim, o ser humano tem o corpo dissolvido com a morte, mas a alma – a identidade, aquilo que faz você único – volta ao seu Criador.

Os pensamentos sobre a imortalidade da alma se classificam em argumento histórico (o consenso dos povos de que existe e ponto final); o argumento metafísico (a alma como entidade espiritual, não pode ser dissolvida como o corpo); o argumento teleológico (a possibilidade de um tempo para realizar o que antes fora frustrado); e o argumento moral (há um Governante do Universo que exerce justiça).

No Velho Testamento não houve uma designação para a alma, embora haja a ideia do Sheolinicialmente, o lugar neutro, sem distinção moral, sem bem-aventuranças, sem sofrimento para onde vão as almas; o lugar de consciência enfraquecida e sonolenta inatividade, o espaço sem interesse e alegria da vida (SL. 49,17; 89,48); depois, o lugar de destruição e castigo eterno.

O Sheol ou Hades, sinônimo de sepultura, inferno e cova, é a sombria região (1SM. 2,6) da morada dos mortos (PV. 5,5; 15,11a; 27,20a). Segundo muitos pesquisadores, a ideia original é o mundo subterrâneo (JÓ 17,13). Mas todos os mortos vão para este lugar; alguns consideram que os maus e os bons não encontram porque há divisões geográficas neste espaço.

Já no Novo Testamento, há o Paraíso ou Céu ou seio de Abraão – o lugar da visão beatífica de Deus (LC. 16,23; 23,43; 2CO. 12, 2-4) – o lugar onde são reunidos “os espíritos dos justos aperfeiçoados” (HB. 12,23) e o inferno, o lugar da medida da punição (NM. 16,30). Esta divisão, impensada no Antigo Testamento, surge, possivelmente, pela influência cultural dos seis impérios que submeteram Israel, sobretudo o império persa e grego.

Alguns estudos de teologia tem dificuldade com a divisão proposta pelo Novo Testamento. Pois, entendem o raciocínio de que haverá um grande julgamento (IS. 5,14; MT. 25,46). O que confirma que “o poder de YHWV não cessa na fronteira do mundo da morte (AM. 9.2; SL. 139.8)”. Uma vez que Deus não faz acepção de pessoas (JÓ 13,8,10; 34,19; DT. 10,17; 16,19; AT. 10,34; EF. 6,9; CL. 3,25; TG. 2,9; 1PE. 1,17a), todos no Sheol serão chamados a presença de YHWV. Deste modo, a Bíblia não fundamenta a separação, portanto as traduções incorreram em erros; ainda que tivessem o objetivo de “refrear o mundanismo e fomentar a mentalidade espiritual”. Afinal, na presença do Cristo todos estamos no edifício construído pelas mãos eternas (2CO. 5,1-2) na Cidade Procurada, Cidade Não-Deserta, Cidade de Justiça, Cidade Fiel, Cidade do Recreio, a Santa Cidade Celestial, o Monte Santo (IS. 1,26; 60,14; 62, 11-12; JR. 49,25; ZC. 8,3; HB. 11,16; 12,22; AP. 21,2) quando deixarmos, com perfeição, o Sheol (2CO. 5,10) como Enoque e Elias. E não mais como os perdidos na prisão, citado em 1PE. 3,19; 4,6.

Eis a compreensão de uma theologia viatorum.

1 Alguns a posicionam como Hinnom ou Gehenna, uma ravina profunda e estreita que separa o Monte Sião do chamado Conselho do Monte do Mal.

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Fruto do Espírito

No quinto capítulo da Carta aos Gálatas encontramos o subtítulo, viver sob o Espírito no caminho da liberdade e da castidade. O autor, seguindo este raciocínio, descreve, então, as ações para a disciplina ser comungante com o Espírito.

Nesta ótica, “viver em comunhão” é manter a harmonia com o Espírito. Ter disciplina é alcançar, no espaço da fé, a competência para o compromisso no Espírito, ter o vínculo celestial e a vivência processual da mutualidade da promessa divina. (Sobre a disciplina espiritual vale lembrar o pensamento de Stuart Briscoe, quando diz que, tal disciplina, em algumas pessoas, pode produzir doçura e maturidade, e em outras, amargura e regressão).

Na sequência do texto há a manifestação clara, visível e inequívoca do fruto do Espírito. O fruto é um produto natural; é a evidência externa da vida interna. Todas as partes do fruto são necessárias para entrar no Reino, pois compõe a santidade — o estigma da obediência e o robustecimento da visão espiritual (HB. 12, 14-15).

Você quer verificar as partes que o compõem?

Amor, באהבה, αγάπη. A primeira característica do fruto espiritual, não é um ideal sublime. A etimologia desta palavra varia nas argumentações da sua origem. Para alguns é uma dádiva; outros a veem como a recusa ou transcendência da morte; outros a tem como uma prolongada e profunda contemplação e meditação sobre a sublimidade do divino (1JO. 4,8); outros a entendem como a avassaladora e forte energia que fecunda e multiplica a perpetuação da vida; a abertura para o entrelaçamento. Mas para a língua grega do Novo Testamento, amor é a experiência transformadora, palpável, devocional, racional, intencional e espiritual (1CO. 13) que torna bom o relacionamento, favorecendo a afeição perene e perfeita que eficazmente revoluciona com superioridade a criação, o cuidado, a colmatagem, a confiança, a caridade, a correção, a comunhão, a cumplicidade, o complemento, o carinho, a coragem para sua expressão. Enfim, o amor — o caminho da redenção para os miseráveis; a cifra do autoesforço — é o esquecimento de si mesmo, a recusa do autointeresse, a oposição da autopreocupação, a libertação do eu. Amar é ter uma só caminho: ver o próximo como a presença do Senhor.

Alegria, שמחה, o oposto da amargura (FP. 4. 4-5), não é apenas bom humor (hilaritas), nem divertimento (delectatio) ou contentamento (voluptas), mas uma conduta virtuosa originada da paz (FP. 4.4). Sua etimologia expressa que é o vagar pujante da vivacidade, o produto de um ânimo leve, a velocidade do curso que une e cerca como proteção e defesa. Alegria é enfim o motivo para sermos bons com todos e agirmos com ações de graça. É a ocupação que nos conduz as enfrentar as adversidades com ânimo e nos adaptar às necessidades com modéstia (FP. 4. 8-11), pois “tudo podemos naquele que nos dá força” (FP. 4. 13).

Paz. Alguns definem paz como calma, tranquilidade, uma harmonia entre os elementos envolvidos, ou a ausência de violência, beligerância e conflitos. Paz, desta forma, é a ausência de perturbação e agitações. Mas esta explicação padece de equívocos. Paz não surge de um equilíbrio, nem da elevação a um espírito superior. Paz, ειρήνη, é o diligente esforço para permanecer no asseio e no dever que preserva a perfeição das relações (TG. 3,18). Paz se relaciona à pureza, ao fogo (πυρ, pūrus, peuōr) — a ação que limpa nossos corações, retira as manchas (EF. 4.1-3). Paz é uma garantia da justiça, o fim das manipulações, o objeto da paciência. Ou seja, paz, שָׁלוֹם, schalôm, é a situação de plenitude, de bem-estar, o real significado de completude, a capacidade de ser ileso diante das oposições, a conservação do âmago. Isto porque aquele que tem paz ordena sua mente, educa seu coração, perpassa o caminho da verdade, descobre o norte da sapiência, empodera a justiça, adestra o amor, exercita a perspicácia para pôr fim a inquietude emocional (JO. 14,27).

Longanimidade. É o empenho apesar dos obstáculos, o desprezo às ofensas, a recusa de paralisação defronte das sortes adversas, a inteireza da disposição da alma, a qualidade ou característica da coragem generosa quando há resistência ou incompatibilidades com os outros. Longanimidade, µακροθυµία, makrothumia, longanimitas, é suportar os erros dos outros sem retaliação, ou seja, não ser aliciado pela ira, pela fúria, pela fervura da alma (PV. 25,15; Platão no Crátilo). É o senhorio sobre a dor e a infelicidade, sobre as provocações e o sofrimento (PV. 15,18; 16,32). Enfim, é a superioridade ou excelência daqueles que tem erekh’ appayim, “nariz longo” (controle da respiração), mente dilatada sob o plantio da misericórdia em si, a caridade indulgente, fácil e duradoura sob a gravidade de uma falta, uma censura, uma importunação. É a chave para uma relação pacífica e irênica diante dos outros; o controle das emoções (1PE. 2,23).

Benignidade. O bem não é algo que se saboreie isolada e individualmente. Requer a convivência com os outros, pois é o compromisso de viver em contínuo compartilhar para extinguir a injustiça, o preconceito e a desigualdade. É qualidade de ser guardião do irmão (GN. 4,9) de forma responsável pelo seu crescimento, desenvolvimento e refrigério segundo o modelo do discípulo professo. Aquele que leva a efeito o bem tem a capacidade de encorajar a todos para que sejam curadas as feridas antigas e fortalecida a disciplina e a vitalidade diante dos tempos da calamidade e das épocas da aflição (JR. 15,11). A benignidade é uma aspiração filosófica que firma a dignidade humana e fornece distinção ao caráter. Segundo Hegel, é um aperfeiçoamento da serenidade — “a conciliação da alma com seus ideais”. Quem cultiva o trigo do bem com alegria, coragem, tenacidade e humildade, controlando as ervas daninhas que estimulam o egoísmo, a pusilanimidade, a arrogância, a violência e a presunção, evita os atos estéreis do bem. Visto que YHWJ “tudo orienta para o bem [lekâ] (DT. 10.13), para que se conserve muita gente em vida” (Von Rad) com equilíbrio, manutenção e aprimoramento coletivo (RM. 8.28-29). Afinal, o bem é a “quintessência dos mandamentos” (MQ. 3,2; 6,8).

Bondade. É a ação gratuita, comunitária e inseparável da justiça, através da disposição e do esforço da simpatia, da empatia e do amor (1CO. 13,1) que promove a autonomia para a cooperação e o compromisso pessoal no desenvolvimento da ética e da justiça social. Na linguagem protogermânica, gōda, significa “piedade desejável, completa, favorável, excelente, valiosa e adequada”; e na língua inglesa antiga, gædrian, tem a ideia de ser a ação “para reunir, para levar juntos”. Assim, bondade é gentileza, benevolência, graciosidade; a qualificação de servir aos outros com consideração, sinceridade e nenhum interesse. É a ação energética empática do espírito para transformar a sociedade com benção compassiva (1PE. 3,8) como a “generosidade de Deus que se estende tanto aos que desobedecem a sua ordem quanto aos que as cumprem” (SL. 116.12). Bondade é amabilidade e solidariedade (JO. 19.25a; RM. 16.13). Não vem pronta, constrói-se. É um imperativo ético da reta vontade, a qual busca unidade para a fruição de todos. Uma graça! Nunca um assistencialismo, uma pena e ou um ato impensado de caridade. Bondade, rigorosamente, parte de uma relação que reconhece o outro, mesmo que não consiga certezas do fim dos seus sofrimentos, nem o término da sua acomodação, nem o limite dos seus sonhos. Bondade é o mais fácil ato para produzir serotonina.

Fidelidade ou Fé. A palavra fé em sua etimologia em latim, fides, pertence a uma extensa família regulada pela ideia de fidelidade. Fé, assim, tem o sentido de “adesão”. Na língua indo-europeia, bheidh, é persuadir, confiar, aconselhar. No hebraico, é “firmar-se em YHWJ” (Von Rad). Em alguns textos restritos, como no profeta Isaías, “crer era dar lugar à ação de Deus, renunciar a se salvar por si mesmo”. Em qualquer origem, fé é uma questão interior, confessional, totalizante e pura. Um único ato. Ao menos para os professantes da fé. Porque é uma ação julgada pela “Palavra de YHWJ que institui, ordena, informa e […] desmascara a incurável incredulidade” (Von Rad). Em outras palavras, fé é o ato essencial, a obra que conduz a liberdade para além das arbitrariedades, para a independência diante das circunstâncias. Fé um compromisso, uma atitude particular de obediência bíblica, uma disposição interior. Para a teologia, fé é a misericórdia através do conhecimento que nos afasta da compreensão e reciprocidade do geral. É uma decisão que transforma “o futuro imediato” (Fohrer). Assim, sob o poder da fé (MC. 11.24), Deus trabalha para os que nEle esperam (IS. 64. 4; 1RE. 13,11-26; 1CR. 29, 14; 2CR. 20,20d; 25, 8c; 28, 9; 30,19; 33,12-13). Na perspectiva da fé convincente, produtiva, hermenêutica, aplicativa, metamórfica, atual e testemunhal há o fim de todos os desesperos, o encerrar de todas as tristezas, o colecionar de todas as preces, o comprometimento que transforma as dificuldades, o enlace das esperanças, a proteção contra os perigos, o azul intenso dos céus. Afinal, a fé encontra, comunica e mantém a esperança, além de dar suporte, paz, alívio das angústias e compreensão do papel de ser um ajudador (a) em todos os dias. Fé, portanto, “recusa entrar em pânico” (Lloyd-Jones). Se opõe a perturbação, ao alarme e a exaustão. Mas sempre está pronta a enfrentar as necessidades e as provações, mesmo quando mantemos as dúvidas. Para isto nos foi dado o escudo da fé (2SM. 22,36; SL. 7.10; 18,30; 47,9; PV. 2,7; JR. 46,3) — a arma defensiva que amortece as setas incendiadas dos inimigos; a resposta favorável de Deus, seu acudir, para que os joelhos não vacilam, e se alarguem os passos. É o meio oferecido aos defensores do Reino, os representantes de Deus. O escudo da fé (Thureos, θυρεός, originalmente θύρα, “porta”) nos protege contra o desânimo, as ansiedades, os medos, as inseguranças e as incapacidades (GN. 15. 1). Porque a fé começa e termina com um conhecimento do Senhor (Lloyd-Jones). A fé baseada no conhecimento da doutrina bíblica condiciona as emoções, dirige a felicidade, elimina a infelicidade, ridiculariza a insensatez e nos faz andar sobre as águas infestadas de problemas e dificuldades com grandes e ameaçadoras ondas. Já a frustração, a angústia e o desespero são moldes que substituem a fé em delírio que inebria os movimentos humanos e os conforma a perseguir a sorte para fugir de si mesmo (Mondim). No abandono da fé, em seu desdenho e ruptura da comunhão, todo destino se torna penoso, a morte se torna um assalto, um submergir nos abismos da terra e nas águas caóticas que devoram, uma descida mitológica ao inferno (Von Rad). É preciso acrescentar ainda que há atitudes contrárias ao desenvolvimento da fé: a discórdia, a presunção, a avareza, o orgulho, a impaciência e os projetos humanos sem a presença do divino (TG. 4.1-5,1-16). “Cristo expressa que o conhecimento de Deus e a fé nEle, não é dado pela admiração das maravilhas do seu poder, nem dos sinais e milagres, mas no testemunho do espírito” (Hegel in Fenomenologia do Espírito). A fé, bem trabalhada neste sentido, através do desenvolvimento interior de uma pessoa, torna-a capaz de ampliar o σκέψις, a investigação, o exame dos males ou angústias, através da observação de si mesmo (Hegel in Fenomenologia do Espírito); tendo como bússola a Palavra. Por isso que fé é fidelidade consciente, é a prontidão, a determinação, a definição e a direção para solucionar os dilemas que o ódio, o mal e a contumácia suscitam (LC. 16,8b; HB. 11,1). É compromisso. Logo, a armadura da fidelidade é oferecida àqueles que são fiéis, verdadeiros, autênticos e dignos de confiança (RM. 13.12). Afinal, apenas os filhos da Luz tem os bens que o Senhor lhe concede (LC. 16.8). Porquanto reconhecem a armadura celestial dada como arma para a batalha, para insistir no paradoxo da vida apostólica (2CO. 6. 1, 3-10) nos dias maus (EF. 6. 13). Como argumenta Stuart Briscoe, “dia após dia é preciso que sejamos encontrados carregando nossos fardos de fidelidade, até mesmo através da dor e do sofrimento, e em algumas ocasiões relativamente raras, em face da própria morte”. É necessário ouvir a voz do Espírito que nos guia a mortificar os conhecidos pecados para viver com fidelidade. Vencer o ego, as perniciosas emoções, a oportunidade ou chance do mal, a preguiçosa descrença, a ágil mentira, a desgraçada facilidade dos meios de comunicação e a deturpação dos costumes, nos fará mais fortes, pela fé, para derrotar todos os inimigos da fidelidade. A vitória virá porque a fidelidade não racha se realizarmos o exercício da troca incondicional, da paz, da união resistente que defende um ao outro com vontade, participação e amor sem que isto seja imposto por uma pessoa ou lei. Fidelidade e Fé nos faz consortes, companheiros e responsáveis, tendo em vista que toda a Bíblia faz referência a ação fiel da conduta cristã. Assim, lemos que Deus nos guia (JR. 10.23; PV. 16.19), ilumina nossos padrões pessoais (EF. 4. 17-5.21), nos encoraja para num único ato nos despojarmos do velho e nos reveste do novo (EF. 4.22). Eis a “marca da fidelidade” concedida aqueles que obedecem e glorificam a Deus continuamente.

Mansidão, Ρrauteß, πραΰτητος, substantivo feminino na língua grega, é a suavidade de disposição, a força suave, o equilíbrio delicado, tranquilidade, mansuetude, a serenidade que expressa poder com reserva e gentileza do espírito. Por ser uma ação direta, a raiz “pra” enfatiza a origem divina da mansidão. Assim, na literatura bíblica a mansidão começa com a inspiração do Senhor e termina com o empoderamento dirigido pelo Espírito. É uma virtude divina que só pode funcionar através da fé (2TM. 2, 22-25). Porquanto é o oposto da arrogância. Na prática, é a capacidade de humanizar o opositorsalus rei publicae suprem lex — ou seja, “não se ofender por pouca coisa, por nada se ostentar, não guardar rancor, não ser vingativo, não remoer as afrontas, não reabrir as feridas, não alimentar os ódios. É um ser hílare; aquele que busca um mundo melhor” (Noberto Bobbio).

Autodomínio. O caminho da liberdade da vida cristã proposto na parênese é concluído com o autodomínio ou controle de si. Domínio, na etimologia, é o exercício do poder sobre uma propriedade, um território ou uma pessoa. Vem da palavra latina domus, casa, no grego δεσϖότης, déspota, dono, e na antiga língua indogermânica é demə, construir. A pessoa com autodomínio é aquela que, com competência, governa o que lhe é dependente; aquela que examina, fiscaliza, inspeciona e vigia o que está em sua vontade. Autocontrole subjuga as inclinações do próprio temperamento, com o uso da razão, para manter o equilíbrio. Isto pode ser conquistado com moderação, mas é mais comumente alcançado com a autodisciplina de uma mente equilibrada, adestrada ao conhecimento, condicionada com responsabilidade, reverência e respeito. Nos tempos antigos, dentro da cultura sapiencial, o autodomínio era a recusa das depravações, o desvio das irregularidades e inconstâncias, a rejeição da submissão ao domínio da vontade alheia, a avaliação rigorosa da própria conduta, o afastar das forças reativas — símbolo da participação passiva e das ilusões da objetividade. Só tem domínio próprio, aquele que tem alma singular, paz plena e perseverança, humildade e virtude unida ao conhecimento da Espada da Palavra, a fim de que em honra e dignidade sejam elevados (e não envergonhados) no Vale de Magiddu (Cartas de Armana), Magidû ou Mkt(y) (assírio), Har-Magedone em grego, Har Megiddo, מגידו, em hebraico: Armagedon, o local das tropas. A pessoa que se autodomina encoraja a prática da sabedoria, “a nobreza de porte, o manejo das armas, o saber tocar a harpa, usar a palavra (nêvor dâvâr) […], a suficiência idônea e apta de desempenhar suas tarefas, frear seus sentimentos e impulsos, ter um coração calmo (lêv marpê) lento para a cólera (PV. 14.29), reconhecer a oportunidade, ser capaz de aconselhar, exprimir e comunicar suas convicções de uma forma determinada, com estilo próprio e ter notável precisão” (von Rad). O dominador de si sabe que há uma “rede de consequências que pesa sobre os destinos”, sabe que há movimentos “para o bem e para o mal” (von Rad) (PV. 25,28). Sabe que tem a vocação divina e recebeu o carisma “hâk maat’ élohîm” para fazer justiça (1RS. 3,28; 5.9) recebido porque adquiriu amadurecimento vigoroso (CL. 3. 17), pois se tornou firme vigia do plano da direção espiritual no vasto campo da ação individual, um acrisolador frutuoso e coerente de suas atitudes (JR. 6,27; 2PE. 1.4-8). Um servo que não se molda aos esteriótipos.

Para finalizar, o aprendiz da fé cristã e o cristão maduro, deve se acostumar ao alimento proporcionado pelo Espírito, ao nutriente que capacita todas as habilidades necessárias para extinguir à miséria e a aridez da carnalidade. Do contrário, sem o Espírito e seu fruto somos vazios, barulhos sem sentido”, pessoas falidas, um nada espiritual”.

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A história de Betsabá — de débil a forte

Ela era casada com Urias, um dos trinta maiores guerreiros no reinado de Davi. Mas peca com o rei, diante de Deus e dos homens. Engravida. Aceita mentir e iludir seu marido, enganar a sociedade, proteger o rei, livrar-se do risco de morte. O plano não dá certo. O marido não acompanha a sugestão. O rei, então, planeja deixá-lo a própria sorte no campo de batalha; ele deseja sua morte. Bate-Seba, com coração endurecido, não o alerta. Não se arrepende; permite que a sorte a conduza. Urias é morto.

Ao nascer-lhe o filho, Deus o toma. Bate-Seba se anula e some da história bíblica por um tempo. A recordação de como ela destruiu sua casa e seu casamento lhe agulha o coração. Sua infidelidade demonstra ceticismo e egoísmo. Não podemos saber se sua infidelidade surgiu da falta de serenidade, da pouca intimidade, do baixo compromisso. Mas isto não importa. A fidelidade é consciente; não pisca, não cochila, não se desorienta.

Bate-Seba recusou a mútua assistência. Não quis ajudar, não deu apoio, não incentivou, não motivou nem quis se envolver nas questões do marido. Não fez simplesmente uma vingança (cenas de uma briga de casal). Exerceu o egoísmo. Viu a si, não o outro. Não foi o caso de desamor; foi inexistência de amor.

Bate-Seba não respeitou nem considerou o marido. Respeitar, respicere, segundo alguns significa “olhar outra vez”, “olhar atrás”, “atentar”. Respeito, respeitar é valorar alguém. É não violentá-lo. É manter uma convivência saudável e pacífica, aceitando as diferenças, não transgredindo os direitos do outro. Ou seja, é enriquecer as fronteiras para construir equidade e justiça nos limites dos relacionamentos. Já a consideração se origina do respeito. A etimologia da palavra consideração, nos faz entender que nos relacionamentos, os olhos, a mente e o espírito têm a obrigação de examinar cuidadosamente os assuntos para depois refletir detidamente as respostas e soluções. Considerar equivale a contemplar — marcar o limite do templo, o espaço reservado ao Deus; o muro que o rodeia e torna sagrado e intocável. O prefixo “con” indica que “tudo é junto, confessa, confraterniza, torna um conjunto”. Assim, considerar é indicar o conhecimento que se tem sobre algo ou alguém.

Bate-Seba esquece que diante das questões éticas é impossível o silêncio. Em outras palavras, os relacionamentos exigem diálogos. Mas ela não quis concordância, quis discórdia. Cai no silêncio que sufoca o relacionamento, afasta-se do diálogo e propõe a morte. Recusa a benção, opõem-se ao testemunho de si e do outro. Não se importa com ninguém.

O pecado lhe adentra a vida, os atos, as palavras e os pensamentos. Sua casa é destruída.

Após sofrer a difamação e a injúria — e todas as demais consequências — pelo mal cometido, Bate-Seba se torna outra pessoa. O pecado que a escorraçara chegara ao fim. Ela reconhece seu erro e seus defeitos. Confessa-os. Arrepende-se. Muda.

Os anos correm com ela ensinando seu segundo filho, Salomão, a fazer o que é certo, bom e verdadeiro. Para alcançar sucesso ela chega ao ponto de afastar seu filho dos demais irmãos (que Davi tivera com outras mulheres e que o envergonhava) (1RE. 1,10). O aproxima de Natã, o profeta próximo ao rei, e Benaia, o comandante do exército após o assassinato de Joabe, de Zadoque, o sacerdote, e dos poderosos do reino davídico. Sob seus olhos, Salomão se torna um homem reto e bom; um ser humano temente ao Senhor e um dos que obedecem a sua Palavra.

Bate-Seba é uma mulher de valor que não interrompe sua vida por conta de um pecado, um erro, uma queda — adultério com Davi. Ela olha para adiante. Ama. E assim, torna-se aceita, reconhecida e respeitada por todos. O Novo Testamento a inclui na genealogia do Cristo (MT. 1,16).

Seu notável exemplo nos deixa, ao menos, duas lições.

1. A compreensão da debilidade humana. Estamos sujeitos aos erros, segundo GN. 4,47 — “o pecado jaz a porta”. Ora, pecado é todo ato de irresponsabilidade. Mas só um pecado (excetuando a blasfêmia contra o Espírito) não gera a eterna prisão no sofrimento e no mal. O pecado se origina da perda de direção e da erosão da cultura. O rumo que uma vida de oração nos proporciona é o que dá direção, sem desvios, a integridade que antes faltara. A inculturação, em sua maioria, surge pelo afastamento eclesiástico — igreja para quê? Bate-Seba, entretanto, busca e encontra Deus e sua graça transformadora;

2. O entendimento da missão confiada. Ou seja, Bate-Seba se vê finalmente como mulher. A pessoa com tão grande importância quanto outra qualquer. Pois descobre que ser mulher é ser justa, reflexiva e íntegra.

Bate-Seba descobre e entende que ser mulher é…

I. Ter a capacidade de pôr em ordem a si mesma e sua casa;

II. Ser disciplinada e harmoniosa com sua casa e com todas as pessoas;

III. Ser íntegra em todos os seus relacionamentos. Portanto, ser sábia em sua convivência;

IV. É ter e dar respeito.

Bate-Seba desenvolve sua espiritualidade e seus relacionamentos porque aprende a amar seu marido, seu filho e seus amigos. Além de reconhecer ao Deus de Israel e praticar à Palavra. Aprendamos com ela.

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Política sem rumo – parâmetros para a morte social brasileira

No Brasil de hoje, os cidadãos têm medo do futuro.

Os políticos têm medo do passado.

(Chico Anísio).

Em 3 de fevereiro de 1999, no jornal Folha de São Paulo, página 3 e 4, sob o título “Prefeito usa PM para exportar mendigo – Ação visou limpar a cidade”, escreve-se: “…anteontem à noite, um major da Polícia Militar e quatro guardas municipais de Corumbá foram presos em flagrante quando, segundo a polícia, conduziam em um ônibus 16 mendigos que teriam sido capturados naquela cidade, mantidos encarcerados e forçados a embarcar no ônibus para deixar o Mato Grosso do Sul. O grupo fazia parte de um total de cerca de 32 que haviam sido obrigados a deixar Corumbá no domingo à noite por não ter emprego e moradia fixos. Parte deles fora deixada em cidades do interior do Paraná e de São Paulo, e os últimos 16 ainda estavam no ônibus quando este foi parado pela Polícia Rodoviária em Itapetininga (170 km a oeste de São Paulo). Entre os que ainda estavam no ônibus, havia duas grávidas (uma de 17 anos), doentes, idosos, e dois estrangeiros. O prefeito de Corumbá Éder Brambilla (PSDB) disse que decidiu retirar os mendigos das ruas devido ao início da temporada de pesca no município, chamado de capital do “Pantanal”. O prefeito afirmou que os mendigos que estavam no ônibus apreendido em São Paulo faziam parte de um grupo de 90 pessoas “despejadas” na semana passada no Porto Geral, um cartão-postal da cidade, à beira do rio Paraguai… “Não é justo que Corumbá e Mato Grosso do Sul se transformem em dormitório de mendigos e desocupados, alguns até com passagem pela polícia, exportados por outras regiões do país”, afirmou.

Triste história real da intervenção do Estado que entende o direito como um fim, não como um meio. Crassa história que impõe a ideia de que a sociedade é maior do que o indivíduo. Descomedida e absurda narração de uma idealização estigmatizante. O direito, por isso, é visto como uma realidade cultural que procura um valor de justiça – mas uma justiça que ordena e hierarquiza a sociedade; não uma justiça que preserva a paz comum.

Nenhum de nós aprende que a justiça só pode se dar a partir da democracia nem é ensinado que a democracia é uma exigência da justiça. Ninguém ensina que a “Constituição Federal apenas delimita a moldura em cujo interior os operadores do legislativo podem transitar”. Ninguém divulga que a sociedade justa é possível através da conscientização dos menos informados.

Decorrentemente, somos uma sociedade preconceituosa. Por ser imaginário o preconceito cria um universo particular. Deixamos de crer nos que os outros creem e passamos a ser irracionais (atitude da conduta em que se escapa, total ou parcialmente, à razão), dependentes (subordinados ao sujeito), insuficientes (incapazes, incompetentes) e impossibilitados de controle (obstaculizados, refutados).

Preconceituosos não raciocinamos, não produzimos argumentos que se sustentem. Concluímos sem premissas. E criamos superstições e confusões difíceis de erradicar.

Falta a prática ética. Ética é o caráter ou comportamento que reflete a relação que temos, imediata e cotidianamente, com a sociedade. É uma escola de julgar, de razão e de sensibilização. Eticidade é a vontade de que meu conceito supere e seja guardado na subjetividade do outro. Em outras palavras, ético é o modo de atuar universal porque passou pelo processo de mediação. O que supera e conserva o direito e a moralidade diante da liberdade. Ética, na sociedade civil, media a particularidade da pessoa concreta e condiciona o contexto dos diálogos, de forma responsável e pessoal.

Recordemos o que disse Jürgen Habermas: “Bom é quem, em situações de estresse, é capaz de sustentar as suas máximas”. Ou seja, pessoas éticas têm modelos do bem viver. Criam disposições compromissivas – um esforço – para manter-se a tradição das virtudes, as quais não são apenas forças motrizes internas do ser humano. São seres humanos com compromisso para libertar a sociedade da atração social originada pela pressão da sociedade. Porque ética é o equilíbrio que interconecta as virtudes.

Isto tudo nos aclara que a ética na política, junto, é claro, de outras qualidades humanas, possibilita garantias na vida social. Logo, cumpre ao político a estipulação dos fins corretos, a integridade pessoal e a prudência estratégica. E ao cidadão compete chamar ao falso de falso, ter consciência moral e “comunitária” – ações com regras de decência, ordem e asseio – e avaliar os erros, as falhas e as fraquezas morais e de estratégias políticas.

É possível a construção desta realidade social se privilegiarmos o estudo e a transformação das condições objetivas na sociedade de modo a permitir a plenitude da vida individual. Precisamos ir além da consciência histórica sobre a desigualdade e as relações de hierarquia, mando e obediência – da família ao Estado. É preciso flexibilizar o mito do brasileiro “bonzinho”: cordial, ordeiro e pacífico. E voltar a ter esperança no impossível, na prática política das dimensões humanas mais profundas dos incontáveis relacionamentos pessoais. Assim, a democracia será de fato o encontro dos significados políticos e sobreporá a economia. Pois será um conjunto de respostas a necessidades da vida social desenvolvidas pelos homens em sua história, como a organização da vida coletiva e o atendimento de objetivos comuns.

Daí, duas são as tarefas da atividade política.

1. Obter um consenso da sociedade civil para organizar e mobilizar as direções a serem adotadas;

2. Transformar o resultado do consenso em poder de direção hegemônica na sociedade política.

Afinal, cidadania é a escolha cotidiana dos fundamentos políticos. É a participação na direção dos negócios públicos. É o exercício cultural (ideológico), moral (cosmovisionário) e ético (democrático) que nos faz participar das decisões da comunidade e resolver sobre o futuro das decisões legislativas. Porque cidadania não se nega. Mesmo que a sociedade industrial seja sua permanente inimiga, que o progresso seja feito através do totalitarismo, que os meios de comunicação nos faça uniformizados e manipulados por falsos interesses, um eterno conformismo, uma passividade hipnótica, ou como dissera Herbert Marcuse (1898-1979), que sejamos impedidos de mudar qualitativamente porque a sociedade industrial nos ofusca,ainda teremos desejos, objetivos e ideias para tudo modificar. Isto acontecerá quando deixarmos de ser mercadorias e passarmos a questionar os “julgamentos de valor” sobre o contexto político.

Quando compreendermos, organizarmos e transformarmos a realidade, a corrupção o rompimento com o compromisso de viver o bem compartilhado com todos será findada junto da injustiça, do preconceito e da desigualdade.

Quando a política parar de alienar e fragmentar os interesses particulares aprenderemos sobre a eficácia da mediação pública e privada. Porquanto é no intermédio do espaço público, democrático e exaustivamente debativo e participativo que humanizamos a sociedade.

A ética, o derradeiro caminho social, é a atividade reflexiva, não normativa, que favorece a solidariedade e nos permite trocar experiências da justiça. Mas você pode se questionar: Para quê? Oras, para que nos afastemos do reino da sujeira “no reino da sujeira, não se pode permanecer pessoalmente limpo” (Dietmar Mieth).

Éticos dialogaremos com liberdade e estaremos mais perto das soluções dos problemas contemporâneos. Porque encerraremos com o silêncio, com o medo e com a comodidade os inimigos da ética. Teremos claramente na mente que“a falta de diálogo implica sempre na anulação da própria convivência” (Dietmar Mieth). E não nos cansaremos do esforço da manutenção, do investimento e da reflexão, que a ética exige.

Seremos, de fato e de direito, cidadãos. “Cidadão é o que sabe seu pertencimento e manifesta sua autoria de identidade. Ora, somos sujeitos somente se sociais. Não há identidade se estamos sós”.

Cidadania pressupõe autonomia e esta pressupõe consciência. É uma conquista de cada membro responsável e consciente do seu papel social. Portanto, é um processo ativo. Deste modo, a questão da cidadania não pode ser confinada nos limites das relações com o Estado, ou entre Estado e indivíduo. A verdadeira cidadania passa pelas relações que se estabelecem no interior da sociedade. As transformações das relações sociais, mais do que os decretos legais, são a base para a real inclusão da pessoa.

A nova cidadania nos levará a “sociedade democrática”. Esta não é aquela que atende ao desejo da maioria, mas aquela que garante o direito de todos, a qualidade de vida e o desapego ao consolo dos mundos virtuais.

Vivamos o mundo real. Um mundo de convivência e conhecimento. Convivência plena, com respeito e partilha de espaços e ações. Conhecimento como a oportunidade de construir uma reflexão da realidade através das informações recebidas para atingirmos consciência.

Vivamos o mundo real onde políticos de carreira ou políticos novatos, mas já adoecidos pelo poder, percam o espaço público para enunciar opiniões hipnotizantes, rudezas e ofensas nos discursos, erosões na cultura, vinganças intimidadoras, imposições inconsistentes, desorientações e ceticismos manobras e proposições para a morte social brasileira.

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Sentimentos desencontrados

Alguém ao seu lado está desanimado, outro desempregado, enfermo, enlutado… Alguém teve sua perna amputada, outro algo roubado, outro ainda está desenganado. Alguém tem dúvidas, outro o coração despedaçado. Alguém está disciplinado. Outros não estão convencidos do amor e o questionam com rigor. Um cadeirante gostaria de um lugar onde possa ver o púlpito enquanto todos estão em pé; um surdo, um intérprete; um cego, um descritor das cenas.

Todos agradecem a sua oração, mas penso que muitas são as vezes nas quais, todos esperam mais. É claro que é bom segurar uma mão para confortar e ajudar, mas é muito mais humano (e cristão), a persistência da companhia.

A primitiva fé cristã, assim como a fé veterotestamentária, grita para os ouvidos do seu coração: comunhão de amor. Mas “a manifestação do ódio dentro de nós faz a vida cotidiana ser a expressão de encontros agressivos, coléricos, com tom de voz áspero ou silêncios plenos de falsas amabilidades”. Olvidamos e omitimos que o caminho da realização da fé, o percurso do amor e a abertura para esperança precisam ocupar a totalidade dos espaços humanos. Entretanto, a figura do “homo sacer” é ausente na cultura contemporânea. Por isso somos todos “matáveis”. A neurose sistêmica, o costume da repressão, a hipnose que nos faz meros cumpridores de ordens, autômatos, doentiamente nos faz evitar os conflitos, acostumar-se a passividade sem sentido, o que pode trazer a paz hipócrita — a paz como silêncio de um cemitério: o discurso do medo e da estagnação. Sem a comunhão de amor somos seres fragmentados vivendo de ilusões, somos autoenganáveis. Marcados pelo imaginário, pelo discurso político de emoção midiática, pelo ressentimento ou recalque, nos tornamos canalizadores da dor, histéricos e irracionais. Sem a comunhão de amor há a diabolização do adversário e a determinação de novos bodes expiatórios para provocar mais dor, humilhação, esculacho… Nos tornamos carrascos, verdugos que querem que o Outro sinta “o ódio, o tédio e o mal-estar todos os dias”.

Por esta causa, a fé e a religião tem dificuldade de se ajustar aos deficientes e enfermos, se desvia de todos que estão fora da sua regra e generaliza os pecadores, os deixando continuamente perdidos. Quantos consideram o perdão? (Silêncio).

No silêncio, discordando de Lacan quando diz que o “amor colmata uma falha e o ódio a escancara”, precisamos estar no máximo grau elevado, ou seja, completamente, vigilantes com as necessidades do próximo para “seguir em paz, fortalecendo as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados, esforçando-se para ajudar no caminho, em tudo, até que o sofredor pare de manquejar e sinta o puro amor fraternal” (HB. 12, 12-14; 13,1). Porque do contrário, persistimos em sentimentos desencontrados e prosseguimos a afastar todos aqueles que não estão como nós.

Que o Senhor nos corrija.

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Os relacionamentos exigem a totalidade do ser

Exórdio

O discurso do ódio e a cultura da punição afetam a igreja, as empresas, as nações, o país. As instituições estão nocivas, infaustas, enfermas, peçonhentas e por esta causa a vida futura está condenada. Tudo virou um grande arquipélago carcerário, um refugo de castigos, uma rede de ilegalismos biopolíticos que aumentam os perigos para a humanidade.

O ser humano está fragmentado. Se tornou um pecador compulsivo, um ser incompleto, uma engrenagem de intenções da sociedade, um sofredor de delírios infrutíferos, um somático da sociedade capitalista, um marginal e um demônio.

Há séculos, devido as múltiplas visões sobre o ser humano ampliam-se as subjetividades do medo, desdobram-se os espaços de guerra, se potencializa as inquietudes, limitam-se às liberdades, normalizamos os comportamentos, suprimimos os indiscerníveis, diabolizamos os adversários, criamos paradigmas de eficiência inalcançáveis, despersonificamos os alienados, impulsionamos as urgências, concordamos com as aclamações sem raciocínio, contingenciamos o palco das relações de força, amparamos o cinismo, apressamos as convicções sem o tempo da reflexão, anulamos a conexão da verdade com a justiça, excluímos os inaceitáveis e domesticamos os demais. Manipulamos a todos.

Estamos atrofiados. Já não podemos responder…

Você conhece a si mesmo?

Reconhece as próprias áreas de perigo?

Sabe onde é vulnerável?

Consegue ter a força necessária para se afastar das suas fraquezas?

Por isso, se alguma das respostas for negativa, você corre o risco de cair na inconsciência, se tornar mórbido, perder a essência da vigilância, ficar desatento diante das tribulações e agravar o mal da humanidade.

Em hebraico, infelicidade significa estar parado.

Mas a Palavra da Verdade nos diz que é sempre possível, sob a dependência de Deus e com a ajuda de seres humanos responsáveis, equilibrados e vigorosos retomar a integridade. Para isto é preciso que nos desafiemos, desafiemos os outros e combatamos o Mal e o Mundo, com fé, coragem, amor, moderação e sabedoria. O que significa, entre outras, não perder a oportunidade para exercitar a fidelidade essencial da fé dialogal. Assim, vale recordar que o servo fiel da sabedoria ou filho da luz (LC. 16,8) é aquele que está sempre pronto, com determinação, definição e direção, para solucionar os dilemas que o ódio, o mal e a contumácia suscitam.

Um gigantesco campo de batalhadora

A solução da difícil conjuntura espiritual e das contradições terrenas se iniciam pela prática dialogal. Pois, a ação espiritual não se acovarda diante das dificuldades. Uma vez que a comunhão — a reunião dos fortes — busca a prédica exortativa, o diálogo, e nos conduz a combater o mal e o mundo, segundo Lloyd-Jones (1987), com a busca das respostas de três questões psicológicas.

1. Por que somos infelizes, perturbados e miseráveis?

2. Por que a alegria e a felicidade vêm de fontes que não tem nosso total envolvimento?

3. Por que nossa vontade é dividida ou ausente?

O coração, a vontade e o tratamento pessoal, para responder e resolver as três questões psicoespirituais, devem buscar às respostas apenas com o entendimento. Ou seja, responder com sabedoria requer primeiro a mente, depois o coração e em seguida a vontade. Logo, não temos o direito de atacar o coração do outro e nem mesmo o nosso. Pois as ligações entre, no mínimo, duas pessoas envolvem e cativam a personalidade inteira. Os relacionamentos exigem a totalidade do ser. Se não conseguirmos a plena inclusão sempre haverá pessoas desequilibradas porque lhes falta a completa união com a Palavra e o Espírito.

A vida cristã é uma vida de um equilíbrio muito sensível. […] Já foi comparada a um homem andando sobre a lâmina de uma faca, com a possibilidade de cair facilmente para um lado ou outro. Ao longo do caminho precisamos depender de distinções muito sutis […] (LLOYD-JONES, 1987, p. 71).

Desta maneira, somos obrigados, porquanto somos responsabilizados, a olhar para cima, pois “Quem julga é o Senhor” (1CO. 4, 4). Assim, pouco adianta nos flagelarmos ou nos criticarmos em demasia. Ao contrário, devemos ter claro na mente que um ânimo podre não nos é oferecido ou imputado no nascimento. No desenvolvimento humano, organizacional e social, como no argumento bíblico, precisamos exercitar o “temor, amor e moderação” (2TM. 1,7). Temor é unido ao temperamento, sua base é o “eu”. Por isso você pode “viver à vida cristã e batalhar contra as tentações e os pecados […] (pois tem) o poder para resistir, o poder para prosseguir não importando as condições ou circunstâncias, o poder para perseverar e ficar firme […] e o poder para todas as coisas — até enfrentar a morte” (LLOYD-JONES, 1987, p. 89). Já o amor — o caminho da redenção para os miseráveis — é o esquecimento de si mesmo, a recusa do autointeresse, a oposição da autopreocupação, a libertação do eu. Amar é ter uma só paixão: ver o próximo como a presença do Senhor. Com ambos, temor e amor, conquistamos a moderação — o conhecimento e a destreza para ter autocontrole, disciplina, mente equilibrada — mesmo que sejamos nervosos ou tímidos.

A somatória destas marcas cristãs fortalecem a ação da fé e reduzem, ou mesmo impedem, as consternações. Aquele que tem , portanto, “recusa entrar em pânico” (LLOYD-JONES, 1987, p. 125). Fé se opõe a perturbação, ao alarme e a exaustão. Mas sempre está pronta a enfrentar as necessidades e as provações, mesmo quando mantemos as dúvidas.

Fé começa e termina com um conhecimento do Senhor (LLOYD-JONES, 1987, p. 135). A fé baseada no conhecimento da doutrina bíblica condiciona as emoções, dirige a felicidade, elimina a infelicidade, ridiculariza a insensatez e nos faz andar sobre as águas infestadas de problemas e dificuldades com grandes e ameaçadoras ondas.

“A obra que Sua bondade começou, Seu braço de poder há de completar” (Toplady).

A vida cristã é extraordinária, embora seja vivida num gigantesco campo de batalhas, os quais muitas vezes desencorajam. A modernidade tem trazido mais obstáculos. Mais de 4 bilhões de pessoas têm acesso à internet. Mais de 2,13 bilhões são usuários ativos do Facebook. Há uma hipótese de que 96% da população mundial tem um telefone móvel, mais de 6 bilhões de aparelhos. Nestes emaranhados de redes sociais, a tentação peculiar assedia a todos. No Gólgota, os sacerdotes tramam, o céu eclipsa, um trai, outro nega, e Cristo perde momentaneamente a identidade de mestre (Jürgen Moltmann). O acesso à informação sem uma correta análise possibilita que hoje O esqueçamos, não convivamos com Ele em todo o tempo, não reproduzimos Suas Palavras, não nos aflijamos com a escravidão maligna e mundana. Tudo é aqui e agora. Logo, o desânimo é proeminente, a tristeza nos inunda, a depressão surge, os fracassos nos congelam, o pecado passa a ser uma atitude viciante, pois a abstinência da Palavra já está cauterizada. Cristo já não se apresenta só; é Ele e mais alguma coisa. Há sempre algum estimulante artificial que nos leva a nunca estar contentes.

“Hoje, recusamos o sofrimento. As pessoas querem felicidade. Assim, anestesia-se a dor, empobrecemos os sentimentos, tornamo-nos apáticos”. (Jürgen Moltmann)

Julgamos uns aos outros

Em decorrência, julgamos uns aos outros. “Julgamento é sempre defeituoso porque o que a gente julga é o passado” (João Guimarães Rosa). Daí, há mais mortes sem sentido, há mais ódio eterno, mais dor que não cura, mais guerra. Ninguém sabe que o ódio é o princípio da demonização — a dilaceração pública oferecida pela sociedade ampliada pela animosidade originada pela antipatia, pela ofensa, pelo ressentimento e pela raiva. Isto nos faz perder a sensibilidade da convivência social. Ora, é necessário recordar que convivência social é derivada do conhecimento das relações, dos conflitos, das necessidades e aspirações humanas. Também é derivada de um bom exercício individual de lapidação de si próprio, o que requer experiência de vida.

“Pela oração, cada um pode libertar o outro em vez de controlá-lo; encorajar em vez de condenar”.

Quão facilmente esquecemos que as relações se dão a partir da maneira pela qual os indivíduos se veem e se enxergam. Eis um grande problema, pois o avistar e o perceber é fluido. Muda completamente a figura, altera e suprime às identidades registradas na memória. Nos fazem abrir mão do absoluto, do fundamento. Potencializam a constante insatisfação, nos fragmentam, enrijecem os critérios e incentivam as comparações. Por vermos apenas um dos lados atacamos os envolvidos na convivência intercultural enregelamos as nossas próprias referências antropológicas e simbólicas, o que eleva as distorções e coerções dos diálogos. A partir daí a convivência se torna conflituosa — um choque de consciências e liberdades — nos obrigando a controlar o outro de maneira extrema.

“Que Deus nos defenda das ruindades calmas, dos ódios que sorriem, que não alardeiam, que caminham entre nós nos andores da falsidade” (Pe.Fábio de Melo).

Por recusarmos o diálogo, alguns até o desprezam, a sociedade se torna opressora, porque tem uma só visão, enxerga apenas um contexto. Mas o diálogo é a conjugação da totalidade contextualizadora e não opressora de qualquer sociedade. Aristóteles vem a memória porque defende que o homem é um animal político. Ou seja, os humanos vivem em sociedade por natureza e não por convenção. Somos dotados do Logos, isto é, da Palavra — como fala e pensamento. Aí, em grupo, em sociedade, na cidade, resolvemos os conflitos e as lutas, buscando sempre o bem comum e a construção da justiça. A convivência é, portanto, solidária. Nasce do reconhecimento da interdependência — mesmo ligada à culpa. É uma conduta, atitude ou disposição para agir com entendimento.

Convivência plena, com respeito e partilha de espaços e ações, será o fundamento perfeito para o entendimento das particularidades de cada ser humano e entendimento da diversidade como parte integrante da vida humana. É a base para o conhecimento como a oportunidade de construir uma reflexão da realidade através das informações recebidas com consciência.

“O inferno é a experiência do abandono, a falta de perspectiva, o sofrimento aniquilante, o lugar do castigo”. (Pensamento moltmanniano).

Aceitamos todas as opiniões

O sobrevir da realidade faz com que a igreja e a sociedade contemporânea tenha vários exemplos de estrutura de plausibilidade. Estrutura de plausibilidade, segundo o sociólogo Peter Ludwig Berger, são às estruturas de pensamento aceitas por uma cultura específica de forma geral e quase inquestionável. Em outras palavras, podemos dizer que é a perda da capacidade de examinar, avaliar e discernir com profundidade os assuntos que se apresentam para um diálogo consistente, consciente e coerente. Em decorrência, as ilusões são ampliadas, a fragmentação da personalidade é exacerbada, os sonhos e desejos são majorados, a negação das negações exponenciadas, a perda do rumo é decretada. Assim, a sociedade corre o risco de aguentar, aceitar ou suportar sem repugnância tudo que se apresenta a ela.

“Admite-se opiniões de todo tipo e a recusa de determinadas doutrinas”.

Como diz Donald Arthur Carson, no livro “A intolerância da tolerância”,

“mudamos de permitir a livre expressão de opiniões contrárias para aceitar todas as opiniões; saltamos da permissão da articulação de crenças e todos os argumentos dos quais discordamos para a afirmação de que todas as crenças e todos os argumentos são igualmente válidos” (2013,p. 13).

Parece continuamente nos faltar o autodomínio e a sabedoria. Vale recordar John Stott em seu livro “Cristianismo equilibrado”: “em coisas essenciais, unidade; nas inessenciais, liberdade; em todas as coisas, caridade” (2009, p. 15). Ou seja, cabe-nos o autocontrole para que as inclinações de temperamento não nos leve a perder o equilíbrio. Ou seja, temos que exercitar o uso da razão. Pois, “renunciar o uso da razão é renunciar à religião [uma vez que] religião e razão seguem de mãos dadas”.

Sem a racionalidade bíblica e espiritual nas nossas leituras e em nossas interpretações o homem se torna um pecador. Francis Schaeffer no livro “A morte da razão”, diz que “pecador que é, não pode o homem ser seletivo em sua significação, de sorte que deixa após si boas e más pegadas na história […]” (1977, p. 90). Nesta ótica, cabe-nos entender que a fé não é uma série vaga de experiências incomunicáveis, um salto no escuro, algo inverificável. Fé é o conhecimento do Deus que existe e envolve o homem. É uma aplicação vigorosa e enérgica do ânimo que nos faz aproximar de Deus através do ponto de referência, que é a Bíblia. Ora, a Bíblia é “a comunicação da verdade proposicional de Deus, escrita em forma verbalizada, àqueles que são feitos à imagem de Deus” (1977, p. 88).

Logo, mesmo que o homem sofra as consequências do pecado original e dos pecados diários, o que o faz limitado, ele tem o potencial — através do amor e sabedoria dialogal — para refletir, sentir temor e alcançar as respostas para nunca mais cair nem ser derrotado pelo erro, pela omissão e pela desatenção.

Justiça e psicologia

Através da justiça nos relacionamentos pessoais obtemos três aspectos da coexistência humana. O primeiro é o ético. Aqui ética significa a virtude da equidade, a competência de agir com piedade e decência para preservação da paz e prosperidade na comunidade cristã (IS. 1.21; 5.23). Em seguida, há a justiça forense – a força ou ação divina para livrar-nos do mal. É a salvação como vindicação (IS. 1.27; 46.13). E em terceiro, a justiça teocrática, ou seja, o cumprimento perfeito da vontade de Deus. Justiça, portanto, é a exigência da obediência no caminho da retidão (DT. 6.25) (Harris; Archer Jr.; Waltke, 1998).

Dizer a alguém “seja justo” pode provocar através da psyché ou anima, a solução de alguma enfermidade do comportamento. Pois o ser humano é o sujeito de sua história. É o único capaz de percorrer um caminho retilíneo para o desenvolvimento do objeto do conhecimento apresentado a nós na medida em que é produzido por nós, segundo Hegel (1996). Desta forma, o mundo sensível — a experiência exterior — exige sempre a observação ou uma percepção externa das mais ocultas paixões do interior humano para que a justiça não seja uma aparência. O sujeito em crise ou em busca de autoconhecimento sob uma escolha consciente pode estabelecer a razão determinante dos seus atos, inclusive diante das formas apresentadas pelo “mundo cindido, separado em dois: de um lado, o mundo verdadeiro e eterno das determinações autônomas, do outro lado, a natureza, as inclinações naturais, o mundo dos sentimentos, dos instintos, dos interesses pessoais e subjetivos” (Hegel, 1996, p. 55-56).

A coexistência humana da justiça em suas três feições e sentidos traz à tona a urgência de uma terapia. Terapia, therapeuo, conforme Gehard Kittel (1965) é o cuidado voluntário e preocupado em servir no espírito (GN. 15.2; 24.2-14). É a capacidade de recuperar o equilíbrio emocional através da “reconquista da autonomia da pessoa, [d]a superação de experiências traumáticas do passado, em suma a normalização dos relacionamentos pessoais e a renovação da coragem para viver” (Brakemeier, 2007). Homens e mulheres constroem sua personalidade por meio do sentido de “cuidar da subsistência não apenas material” (Kittel, 1965, p. 274), mas espiritualmente. A coragem e a prudência de toda a vida social, pública, política e psicológica ganha, com os atos de justiça, um real significado e um verdadeiro compromisso atitudinal para contribuir com o ministério da justiça e do juízo (2CO. 3. 7-9).

O significado e o compromisso nos livram da “cultura do positivismo social”. As experiências do “eu” e seu ambiente social expressam o ponto de vista do inconsciente e das pulsões humanas e animais.

Claro que as sensações alteram os comportamentos. O que enseja a busca da compreensão do desenvolvimento da personalidade pela psicologia e impulsiona a teologia a penetrar no entendimento das alienações da realidade do sujeito em desenvolvimento psicológico. A diferença é encontrada na evocação dos conteúdos vitais da realidade exterior. Ou seja, a psicologia analisa as aparências particulares, os sentimentos adormecidos, enquanto a teologia nos conduz a sublimidade que nos afasta das vilezas originadas pela autoelevação insignificante dos desejos selváticos ou carnais.

“A depressão é um processo de anulação e apagamento das habilidades da mente”.

Ambas as ciências querem encontrar a conciliação dos pensamentos, sentimentos, vontades, desejos, liberdades e oposições dos mundos exteriores e interiores, conscientes ou não, para que a pessoa encontre a si própria. É uma atividade contínua que renova a coragem para viver. Uma contemplação particular da sensibilidade da alma para as determinações ajuizadas da subjetividade que é envolvida pela verdade, segundo a teologia, e segundo a psicologia é a procura da finalidade implícita ou explícita de uma secreta aspiração, atração ou vontade.

Nas duas ciências, parece que a questão do diabolos — o impulso que semeia a desunião — precisa de uma ou mais respostas para compreendermos o que nos divide, separa, aliena, dissocia, desvincula, cega ou minimiza. Deste modo, todas as vezes que, no nosso íntimo, nos alteramos — mesmo que inconscientemente — perdemos a presença do Espírito que nos envolve com liberdade e amor. E criamos psicopatias que dilaceram as relações da convivência. Vale aquilo que considero “meu”. As patologias do egoísmo limitam e aprisionam. Há castrações do desenvolvimento psicológico.

As seduções, o desviar-se do caminho correto (PV. 1. 10), acrescidas pelos corações endurecidos pelo pecado em si (JR. 17. 1), potencializam a vontade desgovernada (IS. 5. 18) e dominam toda a pessoa fazendo-a errar o alvo (GN. 4. 7).

Enfim, a tensão entre a psicologia e a teologia é resolvida, ainda que reduzidamente, pela via intermediária. A sophia encontrada entre os pontos convergentes de ambas, nos conduz as habilidades de fazer escolhas piedosas, sem teoria, abstração ou coeficiente de inteligência. É a vitória sobre a preguiça, a desonestidade maliciosa, a insensatez (o prejuízo a vida reta), o egoísmo (crime violento da recusa em ajudar ou rejeição de quaisquer compromissos) e a imprudência sexual. É advertência contra os pecados capitais. Uma indicação para que, como Jó, deixemos o Vale do Desespero (JÓ 6. 8, 24-26; 24. 12).

Amor e Perdão

“O céu começa em você” — Anselm Grün

A vida é um ruído entre dois grandes silêncios”, por isso precisamos de gente ao nosso lado que saboreie a cultura de participação. Um grupo, uma equipe, uma sociedade que “não se entrincheire contra si mesmo”. Uma consociação, uma comunidade que mantenha a mesma inclinação, ache a lucidez, permaneça honesta, recuse a ausência da verdade, abra a mente com discernimento, admita as duras intervenções como ensino e entenda a força do amor para se manter saudável na “paz dourada de cada manhã”.

O amor, parte integrante da cultura da participação, dá o significado da cifra do esforço, decifrada pela espiritualidade da memória. Sob o exercício do amor, a consciência humana se torna universal, comum e originária. Além de propor a definição do caráter dos envolvidos. Caráter é o que conduz a aspiração filosófica do Bem e a revelação judaico-cristã do Amor. É o poder maior que qualquer outro sistema de avaliação. É o que faz o ser humano um guardião da própria consciência e um ser responsável pela manifestação e epifania das significações dos fenômenos da terra toda. O caráter humano, através da linguagem, interrompe o silêncio da natureza, o mutismo das coisas, a impiedosa indiferença, a obscuridade solitária e sem palavras, a corpulência sem identidade. O ser humano dotado de pensamento e palavra produz as constantes evoluções (POPPER, 1965; 2013) e repele as anormalidades, as degenerações, as perversões, o alienar-se de si mesmo.

Deste modo, a filosofia, a psicologia e a teologia buscam o fundamento do caráter através de indagações. A filosofia segue o caminho da transparência, a psicologia busca o entendimento das interpretações obscuras do sentido do comportamento e a teologia procura a verdade que sustenta a vida oculta. Cada uma destas tem uma caricatura da linguagem.

Um sinal distintivo e indicativo — um caráter — só possível pela criação e renovação do Espírito e pelo exercício frequente e heroico da integridade do caráter incorpóreo (1TS. 4.3-7). Uma firmeza consolidada pelo amor desinteressado e perene (1CO. 13. 4-8), a catapulta daquilo que não nega interesse, mas sabe administrá-lo. A propriedade íntima do saudável coração que mantém as fontes da vida verdadeira (PV. 4.20-27).

O “amor é o único traço de união e cultura espiritual” que não leva para o interesse da paixão. Porque paixões “motivam colisões”. O amor é “reflexivo e motivado”, “um círculo muito estreito de expressão da totalidade”, “a profundidade da verbosidade”, “a interioridade concentrada na exterioridade”. Dado apenas aos que têm “caráter firme e estável, determinado, uma subjetividade que não se desvia nem dispersa”. Porquanto, o “verdadeiro caráter age sempre por iniciativa própria e com responsabilidade própria, não permitindo que um estranho intervenha nas suas decisões ou influencie seus atos”.

O Espírito, por tudo isto, está sempre num movimento progressivo. Ele “nos faz agir de acordo com um fim”. Nos faz encarar o negativo, os pensamentos fixos, os saberes sem vida, a vaidade. Como entendeu Kant (1793, 2008), o espírito vence o abismo da liberdade, a inclinação livre e perversa para o mal, a tendência para tomar decisões comportamentais arbitrárias para além da moral.

Com e pelo espírito nos livramos da opressão da contaminação, sobretudo a social. Contaminação, do latim contaminatio, contaminationis, é a corrupção através de contato. Sendo uma sujeira, poluição, infecção ou alteração da pureza, a contaminação causa modificação nas condições normais devido ao contato que torna inferior, indesejável ou impuro o objeto ou pessoa tocada, através de um rápido processo.

A história da humanidade registra diversos acontecimentos nos quais os juízos foram deturpados ou contaminados por causa da hipertrofia da subjetividade, da alteração dos valores para satisfação individual, da comparação excludente que sequestra a consciência aceita pelo significado social da história da humanidade. As concepções pré-científicas, o modelo médico, o modelo mainstreaming, o modelo social atual, das pesquisas filosófica, antropológica e psicológica não diminuíram os conceitos idealistas dos grupos opostos.

Por isto necessitamos interromper as paixões. Pois as paixões conduzem as ilusões da identidade, a multiplicidade das razões subjetivas, as indiferenças materialistas, aos ódios rígidos advindos da imediatividade irracional e aos desprezos por comportamentos discrepantes.

Precisamos realizar o amor que discerne e encerra com as hipocrisias e falsidades, com as fragmentações, os ódios e os achismos sociais. Carecemos do amor que termina com todas as psicopatias que dilaceram as relações da convivência — a ideia de que tudo é “meu”; uma patologia do egoísmo que limita, aprisiona e castra o desenvolvimento psicológico.

Talvez isto possa ser alcançado com o exercício do perdão. Perdoar não é desabafar nem dizer palavras sem responsabilidade, não é apaziguar nem reconciliar as partes. Perdoar é ser liberto da amargura e das regressões. Perdoar é parar de vagar sem alvo, sem esperança, sem cuidado. É cessar com as concupiscências que procedem do engano e renovar contínua e progressivamente o aperfeiçoamento da mente e do coração à medida da completa e sã espiritualidade para encerrar com a desunião, a desordem e os problemas. O perdão é um derramamento da graça e da misericórdia que nos ensina a parar de julgar os outros com base em padrões, perspectivas e experiências pessoais. Perdoar é trazer a paz.

Considerações finais

“As normas não podem ser extraídas dos fatos” (David Hume, filósofo anglo-saxão).

O centro da vida humana, sua capacidade de relacionar-se, está em agonia. A aflição vem pela linguagem teimosamente incerta, parcial e inessencial (Derrida, 2009), bem como pela inexistência de profundidade, pela inconsciência dos discípulos, pela unidade sem ligaduras, pelo maligno engano dos sonhos, pelas cópias de ideias que não seguem adiante, pelo terror das confissões de sangue, pela animalidade dos sorrisos pintados, pela intencionalidade da captura do paradoxo dos desejos, pela fecundidade mística da violência, pela contradição da história, pela invisibilidade da negação, pela letra morta, pela abstração da ética, pelo consumo do respeito, pela insensibilidade do pensamento, pela exterior psicanálise do espírito.

“O ser humano é alguém que necessita ser cuidado, acolhido, valorizado e amado” (Donald Winnicott). No entanto, tem sido enredado pela sensação do vazio — a depressão nos relacionamentos. Por isso, a vida futura fica ciclicamente condenada. O emaranhado de infelicidade, perturbações, miserabilidades, ausências e divisões nas relações humanas desequilibradas têm dificultado o fim dos ódios — o princípio da demonização.

São poucos os relacionamentos em que há a totalidade do ser. Falta-nos força e inteligência para extinguir as tristezas, os fracassos, os desânimos, as desilusões, os desesperos, às dúvidas e todas às artificialidades dos relacionamentos. A centralidade do afeto, se houver e se não for defeituosa nem pessimista, não pode se tornar uma pretensão acusatória, uma convicção apressada, um cinismo que desconecta as condutas e impede a unificação do pensamento com a consciência.

A animosidade de adultos, jovens e crianças amputam pela antipatia, pela ofensa, pelo ressentimento e pela raiva toda a sociedade e faz perder a sensibilidade da convivência social. Os conflitos nunca são solucionados, o que faz com que a experiência da vida fraterna, conjugal, “onissocial”, sejam descontextualizadas. Quando os diálogos não são conjugados, a convivência plena se torna uma utopia. Porque as particularidades de cada ser humano recusam a alteridade e a diversidade. Logo, o mundo continua cindido. Ao menos até que os relacionamentos sejam, de fato, mas não de norma, totais na humanidade.

As provações revelam o amor”. (Carta aos Hebreus, 12, 4-13).

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